11/03/2016

Uma reflexão sobre selfies, Kim Kardashian e o Dia da Mulher



No Dia Internacional da Mulher, a socialite Kim Kardashian West postou uma selfie da sua figurinha tal e qual como Deus a trouxe ao mundo (com um ou outro melhoramento) no Instagram. Não façam de conta que não viram, vocês viram.

Surpreendeu-me ela estar com tão bom aspecto e tão confiante para se expor daquela maneira quando teve um bebé há uns 3 meses. Claro que o dinheiro, as cirurgias plásticas, os personal trainers e essas coisas todas que fazem parte dos privilégios de se fazer parte do 1% ajudam. Mas bom para ela, de qualquer maneira.

Depois vieram os comentários online:

É uma puta, é uma porca, não tem vergonha, mãe de filhos a fazer estas figuras, há coisas que devia guardar só para o marido ver, não vale nada, é famosa por não fazer nada, é famosa por ser burra, é famosa por ter feito um filme porno. Não tem talento, não tem inteligência, não tem valor. Uma Kardashian boa é uma Kardashian morta!

Bette Midler, essa respeitada diva, veterana do teatro e variedades, veio para o Twitter fazer um espirituoso reparo em como a única coisa que a Kim Kardashian ainda não mostrou ao mundo foram os órgãos internos. Cute. 



Celebrou-se o Dia da Mulher a achincalhar uma mulher que tem um corpo extraordinário - para quem muita gente gosta de olhar - por ela mesmo gostar de olhar e de mostrar o dito corpo. Que mal nos fez Kim Kardashian? Magoou alguém? Explorou alguém? Insultou alguém? É crime ser vaidosa? É crime ser superficial? É crime uma mulher achar-se bonita? 

Não. Crime é slut-shaming, bullying, agressão verbal. Crime é sermos mulheres que cospem noutras mulheres quando elas vivem uma verdade que é diferente da nossa, porque não compreendemos, porque não nos revemos, ou porque invejamos. É crime ensinarmos as nossas filhas e filhos de que quando uma mulher se expõe - fisicamente ou de outra forma - está-se a pôr a jeito para escrutínio, abuso e ofensa. Tradução: Está a pedi-las.




Apedrejar (figurativamente) uma mulher por ser desenvergonhada e provocadora é algo que já era suposto termos ultrapassado em pleno século XXI no mundo Ocidental. Mas pelos vistos o Dia Internacional da Mulher só serve mesmo para dar negócio às floristas, porque a lição fundamental continua perdida:

as mulheres devem ser livres de viver as suas vidas como bem entenderem e as suas escolhas  devem ser respeitadas, mesmo quando não são as mesmas escolhas que nós, pessoalmente, faríamos. 

 
Não interessa como uma mulher se veste ou se comporta. Se é mãe de 10 filhos ou se se recusa a procriar. Se é casada ou se mantém simultaneamente 30 amantes. Se usa golas altas ou anda com a borda do rabo de fora. Se é um tubarão empresarial ou se é uma dona de casa. Se passa as noites a ler em casa ou a tarrachar no Main. Se ouve metal ou Justin Bieber. Who fucking cares? A única coisa que interessa ser é um ser humano decente que não magoa nem prejudica ninguém. Chamem putas às mulheres que maltratam crianças, velhos e animais, por exemplo. Se é para odiar, ao menos redireccionem para o sitio certo. Mostrar uma mamoca ou outra não faz mal a ninguém, pelo contrário, até eleva a moral.





Parecemos ter entranhado nos ossos esta noção de que uma mulher pode ser inteligente ou pode ser bonita, mas nunca as duas coisas. Ou até pode ser inteligente e bonita, desde que nunca se tenha visto ao espelho e não saiba que é bonita, porque a modéstia é sexy, aparentemente.

Vemos uma mulher bem arranjada, maquilhada, com roupa que a favorece a tirar uma selfie para registar como se sente bem na sua própria pele naquele dia, e nunca nos vai passar pela cabeça que ela possa ser engenheira bioquímica ou campeã mundial de xadrez? Porquê? O que é que há naquele gesto que a faça perder pontos de QI? Não se pode ser feminina e feminista? Temos de escolher? Ou bem que leio um livro ou bem que faço o buço mas as duas coisas não pode ser?



Talvez seja verdade que a inteligência, a bondade, a generosidade, o sentido de humor, são valores mais duradouros e mais importantes de cultivar do que a aparência física. Mas podemos ser geniais, amorosas, leais, hilariantes e fucking fabulous ao mesmo tempo, mesmo que isso deixe algumas pessoas desconfortáveis.


A cultura das selfies é provocadora e desafiante, e muita gente a menospreza, porque há quem se sinta desconfortável com o facto das mulheres, pela primeira vez, deixarem de ser apreciadas através da visão de um pintor, da mão de um escultor, ou da câmara de um fotografo. As mulheres hoje são construtoras da sua própria feminilidade, são a arte e o artista, são independentes e livres e donas da sua própria imagem. Elas escolhem como se expõem e quanto se expõem e a quem se expõem. E essa é uma escolha que temos de respeitar, sempre.

Amem-se mais umas às outras, lutem pelas escolhas umas das outras, defendam-se umas às outras de qualquer ataque às vossas dignidades e liberdades de escolha.

E quando acordarem, olharem-se ao espelho e admirarem como o vosso cabelo está espectacular hoje, tirem uma selfie.




“You painted a naked woman because you enjoyed looking at her, put a mirror in her hand and you called the painting “Vanity,” thus morally condemning the woman whose nakedness you had depicted for you own pleasure.”- John Berger